Há cerca de quatro anos, o advogado Jorge Delmanto Bouchabki chegou para uma audiência e viu que na lista que o funcionário do tribunal trazia na mão, seu nome vinha acompanhado de uma anotação: rua Cuba.
O endereço era referência a um dos mais famosos crimes da década de 1980.
Na véspera do Natal de 1988, o advogado Jorge e sua mulher, Maria Cecília, pais de Bouchabki, foram mortos em sua casa localizada no Jardim América, bairro nobre da capital paulista.
Na véspera do Natal de 1988, o advogado Jorge e sua mulher, Maria Cecília, pais de Bouchabki, foram mortos em sua casa localizada no Jardim América, bairro nobre da capital paulista.
O rapaz, então com 18 anos, foi acusado pelo Ministério Público de São Paulo de ser o autor dos disparos.
Absolvido pela Justiça por falta de provas em duas instâncias -a última, em 1999- Bouchabki não conseguiu apagar por completo o estigma da acusação.
“Eu nunca fui tratado como suspeito. Ser tratado como suspeito eu até entenderia. Mas me trataram sempre como culpado. Eu fui condenado pela imprensa”, diz o hoje advogado em entrevista à Folha de S.Paulo -a primeira vez que fala à imprensa, segundo ele, em 27 anos.
“Mas a vida é redonda”, arremata, para dizer que deu a volta por cima. Aos 47 anos, ele segue frequentando tribunais, mas para defender seus clientes -entre eles, réus em cinco processos ligados à Operação Lava Jato.
Bouchabki é advogado de João Muniz Leite na ação em que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva é acusado de ser o verdadeiro dono de um apartamento vizinho ao seu, em São Bernardo do Campo.
O imóvel está no nome do empresário Glaucos da Costamarques e foi comprado com dinheiro da Odebrecht.
A defesa de Lula diz que o ex-presidente alugava o apartamento para acomodar seus seguranças.
Leite trabalhou como contador para o petista e foi quem levou os recibos do aluguel do imóvel para Costamarques assinar.
Os comprovantes foram apontados como verdadeiros por uma perícia contratada pela defesa de Lula, mas os procuradores insistem que são falsos e que o apartamento é, na verdade, propina paga pela empreiteira.
Outro réu defendido por ele é Alexandre Margotto, ex-sócio do operador Lúcio Funaro, acusado nas operações Cui Bono? e Sepsis de participar de um esquema que extorquia empresários com interesse em financiamentos na Caixa. Bouchabki atua ainda em processos da operação Greenfield, que investiga desvios em fundos de pensão, e da Porto Victória, que apura uma quadrilha especializada em evasão de divisas e lavagem de dinheiro.
Na última sexta-feira (2), o advogado recebeu a reportagem em seu amplo escritório no Jardim Guedala, um bairro residencial arborizado, na zona sul paulistana.
Ele diz que, apesar de ter passado tanto tempo sem falar com a imprensa, nunca teve nada a esconder.
“Eu não tenho problema em falar sobre o assunto. Eu não matei meus pais. Estou tranquilo”, diz.
Nas duas salas ao lado trabalham seus dois irmãos, Marcelo e Graziela, também advogados. Na época do crime, eles tinham respectivamente 14 e 10 anos. “Eles estariam aqui comigo se eu tivesse matado os pais deles?”, pergunta.
Após o crime, ele, Marcelo e Graziela foram morar com a avó materna, Cecília. Ela foi uma das suas testemunhas no processo do assassinato dos pais. “Minha avó nunca desconfiou de mim. Ela disse para o juiz: ‘quero que vocês saibam que estou defendendo meu neto, mas se lembrem que a pessoa que foi assassinada foi a minha filha. Eu nunca defenderia o assassino da minha filha'”, relembra Bouchabki.
Ao acusá-lo do assassinato, polícia e Ministério Público apontaram como motivo um desentendimento com os pais, que não aprovavam seu namoro. “Minha mãe não gostava do namoro, mas isso não era nada demais. Chegaram a dizer que minha mãe teria me batido com um taco de sinuca nas costas durante uma discussão. Isso é um absurdo. Eu nunca briguei com a minha mãe”, diz Bouchabki, hoje casado e sem filhos.
Ele e os irmãos têm três suspeitas sobre a autoria do crime da rua Cuba. Duas são de casos concretos em que o pai contrariou interesses de outras pessoas e a terceira suspeita é de um assalto comum. Ele, porém, não quer apontar para ninguém.
“Eu já fui vítima de uma acusação sem provas e não quero cometer o mesmo erro que cometeram comigo”, diz.
PARANOIA
No ano seguinte ao homicídio dos pais, Bouchabki mudou-se para Ribeirão Preto, interior de São Paulo, para cursar direito numa faculdade particular. Tentou levar uma vida normal de estudante universitário até ser flagrado por um fotógrafo numa festa à fantasia.
A imagem nunca veio a público, mas a partir dali deixou de pôr os pés para fora de casa. “Eu não ia a restaurantes porque ficava pensando que na mesa ao lado teria sempre alguém falando de mim. Eu chegava a escutar ‘rua Cuba’, quando na verdade estavam falando do jogo do Corinthians”, diz. “Eu também não queria que um amigo passasse por um constrangimento por minha causa.”
Bouchabki formou-se numa profissão em que a família já tinha um caminho pavimentado. Seus tios Celso e Roberto Delmanto são autores de um dos códigos penais comentados mais vendidos do país.
Ele chegou a ser convidado a fazer parte da banca dos parentes, mas se recusou, para começar do zero um escritório próprio. Montou sozinho, em 1995, seu escritório no centro de São Paulo. Os primeiros poucos clientes foram indicados por amigos. Quatro anos mais tarde, seu irmão se juntou a ele e fundaram o Delmanto Bouchabki Advogados.
Calculou que fazia sentido batizar a banca com a junção do sobrenome materno, tão conhecido nos tribunais, e o Bouchabki do pai, marcado pela repetição na crônica policial. “Eu não tenho razão para esconder [o sobrenome Bouchabki]. No final das contas tudo o que aconteceu comigo me forjou como advogado. Se hoje eu sou agressivo na defesa dos meus clientes, é porque eu também já fui acusado injustamente. Eu sei o que eles [os acusados] passam”, diz.
Nos 23 anos de advocacia, ele defendeu cinco réus apontados como autores de homicídios. Absolveu todos.
Esse tipo de caso desapareceu conforme o escritório foi crescendo, mas lembra de um processo marcante, envolvendo um jovem acusado de matar o dono de um posto de gasolina durante um assalto.
“O menino foi levado pela polícia um dia após o crime, quando estava numa padaria com amigos. Foi reconhecido por cinco pessoas. Eu consegui demonstrar que os reconhecimentos foram forjados. Uma das testemunhas sequer tinha ido à delegacia. Outra, era analfabeta e ‘assinou’ o reconhecimento sem saber o que estava assinando”, disse.
O rapaz tinha 18 anos quando ficou preso por cinco meses, mesma idade de Jorge Bouchabki quando foi acusado de matar os pais.
O advogado vê semelhança nas duas histórias. “A polícia e o Ministério Público investigam mal. Por isso tanta gente é processada e julgada por um crime que não me cometeu”, diz Bouchabki.
“No meu caso ainda teve como agravante o papel da imprensa produzindo manchetes me incriminando. O interesse na autopromoção dos acusadores passou por cima da busca da verdade real dos fatos. Isso fez com que o verdadeiro culpado sequer fosse investigado”, disse. Bouchabki não chegou a ser preso.
MANCHA
Jorge Bouchabki guardou durante anos tudo o que era publicado sobre ele. Acumulou recortes de jornais e revistas. Pensou em processar os autores das reportagens, mas preferiu não levar adiante. “Joguei tudo fora anos atrás, nem me lembro quando.” Mas conserva na memória boa parte das matérias.
“Eu sofri um bombardeio. Um dia um perito foi em casa e achou uma mancha azul num colchão que ficava embaixo da minha cama. Era uma mancha de caneta que tinha estourado, mas na imprensa saiu que a perícia tinha achado uma mancha no meu quarto que podia ser de sangue dos meus pais”, diz.
“Outra vez um policial entrou no sótão de casa e sujou a camisa nas paredes empoeiradas. Tirou a camisa e saiu de casa com ela na mão, vestido apenas com a camiseta que estava por baixo. No dia seguinte havia uma matéria dizendo que a polícia achou uma camisa com vestígios de sangue no meu quarto”.
Ele reclama até da maneira como o identificaram nas reportagens. “Eu nunca fui chamado de Jorginho. O meu apelido em casa e com os amigos era Ginho. Esse negócio de Jorginho foi invenção de jornalistas. Eu odeio ser chamado assim”, diz. “Por isso eu peguei aversão a policial, promotor e a jornalista.”
Em 2010, porém, a família de um delegado preso numa operação da Polícia Federal bateu à sua porta. No primeiro encontro com o cliente preso, foi perguntado pelo policial o que achava da profissão que ele exercia.
“Eu disse que não gostava e contei o que tinha acontecido com minha vida, mas que iria defendê-lo da melhor forma”, diz.
“No final das contas, o caso era uma enorme injustiça contra ele, que foi absolvido em segunda instância nos sete processos. Hoje somos amigos”, disse. “A vida é redonda”, arremata.
SEM SOLUÇÃO
Jorge e Maria Cecília Bouchabki foram mortos com quatro tiros à queima-roupa na própria cama, numa casa na Rua Cuba, no Jardim América, bairro nobre paulistano. Segundo a polícia, a porta do quarto estava trancada por dentro. Os policiais descartaram a hipótese de homicídio seguido de suicídio porque a arma do crime nunca foi encontrada. O local, segundo os investigadores, havia sido alterado.
As suspeitas recaíram sobre o filho mais velho do casal, Jorge Delmanto Bouchabki, então com 18 anos. Ele disse aos policiais que havia saído para visitar a namorada quando o crime aconteceu. A polícia e o Ministério Público concluíram que o primogênito era o autor do crime. O motivo apontado seria conflito com os pais. O rapaz foi indiciado, mas a Justiça o inocentou em 1999 por falta de provas.
Fonte: Folha Press
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